POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça.
O Brasil está com febre, uma febre provocada por delações
inflamatórias no âmbito da famigerada operação “lava jato”. Não se
especula sobre outra coisa senão as possíveis informações extraídas de
Marcelo Odebrecht a respeito da vida financeira de candidatos e de
políticos de ponta. A nação se crê apodrecida. Nunca a nudez das
“acoxambranças” (ou, em novilíngua, “surubanças”) de nossas figuras
públicas teria sido exposta em toda a sua extensão.
Que as práticas políticas brasileiras nunca foram negócios
ao estilo de Madre Teresa de Calcutá, todos já sabíamos. O imaginário
popular é suficientemente crítico para com as transações do “pudê”. Mas,
agora, o Ministério Público quis entrar nos detalhes da lascívia
política.
Vamos com muita calma nesta hora. As práticas investigativas
do Ministério Público e da Polícia Federal são tão controversas quanto
as práticas políticas que desejam expor. Não nos entreguemos à febre.
Ela é antes de mais nada o sinal de um estado patológico a refletir o
grave momento da saúde política e institucional do país.
Uma pessoa encarcerada em fase pré-processual por mais de
ano (agora já condenada em primeiro grau), sem a mínima noção sobre
quando vai ser solta, e da qual se exige, em troca da esperança de um
dia ver novamente o olho da rua, que entregue gente, de preferência
petistas ligados a Lula e Dilma, diz o que querem que diga. O mal da
tortura é que não oferece provas sólidas da verdade, mas apenas provas
sólidas da (in)capacidade de resistência do torturado. E a tortura não
precisa ser física, aquela do pau-de-arara ou da cama elétrica, nem
carece de extração de unhas com alicate ou de queimaduras no peito com
toco de cigarro. Pode ser psicológica, mais fácil de ser escondida e
mais controvertida em sua conceituação.
No Direito Penal alemão se fala de “Aussageerpressung”
(StGB, parágrafo 343) ou “extorsão de declaração”, como crime contra a
administração, diferente da “Körperverletzung im Amt” (StGB, parágrafo
340) ou “lesão corporal no exercício da função”. Sem dúvida as nossas
delações chegam muito próximas da “Aussageerpressung”. Ela não traz
vantagem processual significativa ao delator, a não ser a perspectiva da
pena menor e a possibilidade de gozar de liberdade provisória. Fossem,
porém, as normas penais e processuais penais seguidas a risco, a prisão
cautelar inexistiria na maioria dos casos e a dosimetria da pena não
comportaria gravames tão exacerbados. Portanto, a vantagem da delação,
se existente, é ser tratado conforme manda a lei. Não é nada lisonjeiro
para o nosso sistema judicial que o investigado tenha de submeter-se a
uma extorsão para ver reconhecido seu direito ao tratamento legal.
O Ministério Público se defende mediante recurso a
comparações com o direito estrangeiro. É o velho complexo de vira-latas.
Se lá fora fazem, é porque é bom. Estão em voga os paralelos com a
operação “Mani Pulite”, de desbaratamento da influência de organizações
mafiosas na política italiana, na década de noventa do século passado.
Poucos neste Brasil febril sabem que nossa prática de investigação
diferenciada para apuração de delitos relacionados a organizações
criminosas quase nada tem em comum com a festejada prática italiana.
Sequer o festejo é merecido, diante dos controvertidos impactos da
operação na vida política daquele país. Devemos, porém, ter em mente que
o modelo italiano se limita apenas às organizações do tipo mafioso ou
armado, conforme previsto no artigo 416-bis do Codice Penale.
O artigo 41-bis do Ordinamento Penitenziario Italiano, por
sua vez, prevê o “carcere duro” para os integrantes desse tipo de
organizações. A delação premiada (“disposizioni premiali”) foi
introduzida pela Lei 203 de 12 de julho de 1991 como forma de
abrandamento desse regime, em benefício de ex-mafiosos “arrependidos”,
dispostos a colaborar mediante denúncia de comparsas na cadeia de
comando da organização. Tais denúncias sempre implicavam sérios riscos
para os colaboradores, submetidos ao princípio da “omertà”, ao dever de
silêncio, cuja violação é punida com a morte. As negociações previam
medidas especiais de proteção dos colaboradores, não só com o
abrandamento do regime de execução da pena, mas, também, com a mudança
de identidade e o acobertamento do paradeiro do delator e de seus
familiares.
Trata-se de contexto bem distinto daquele que inspirou a
legislação de repressão às organizações criminosas no Brasil. Para
começar, o conceito de organização criminosa adotada entre nós é muito
mais amplo do que o contemplado no artigo 416-bis do Código Penal
italiano. A Lei 12.850/2013 define em seu artigo 1º, parágrafo 1º
“organização criminosa” como “a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas
estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda
que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente,
vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais
cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de
caráter transnacional”.
A nossa lei não contempla apenas organizações que adotam a
violência ou ameaça como meio de manter sua funcionalidade. No Brasil,
organizações desse tipo podem ser identificadas no tráfico de
entorpecentes, como no caso do Comando Vermelho, dos Amigos dos Amigos,
do Terceiro Comando, no Rio de Janeiro, ou do Primeiro Comando da
Capital, em São Paulo. Violentas por natureza, elas se aproximam em
alguns aspectos da tipologia das organizações mafiosas. Inserem-se
perfeitamente na definição da Lei 12.850/2013, que, todavia, tem escopo
bem mais amplo.
De fato, com a Ação Penal 470, o chamado caso do “mensalão”,
houve, entre nós, certa banalização do uso do conceito de organização
criminosa. Qualquer pessoa coletiva, como partidos políticos,
instituições financeiras ou empresas, porque sempre “estruturalmente
ordenados”, pode converter-se num abrir e fechar de olhos em organização
criminosa, se seus filiados, sua direção ou seus sócios, na perspectiva
do modelo teórico sobre os fatos em investigação, construído pela
acusação, se “dividem em tarefas” para obter vantagens com a prática do
crime.
Aliás, já se sugeriu até que o próprio governo federal
poderia converter-se em organização criminosa, o que seria um rematado
contrasenso. Pior ainda, um ajuntamento solto de pessoas poderia, na
ótica de certos jovens procuradores, converter-se em organização, mesmo
que nem todas se conhecessem. Nesse caso, bastaria construir uma
estrutura teórica, para ordenar essas pessoas por tarefas em “núcleos”
de atuação supostamente inter-relacionados e atribuir a todas a
participação vantajosa no resultado de crime, que pode ser de um só ou
de algumas delas. A existência ou não de uma “affectio societatis” seria
absolutamente irrelevante para a configuração da organização criminosa.
Montam-se com enorme facilidade teorias sobre fatos
investigados, que muitas vezes, como meros construtos abstratos, pouco
têm a ver com a realidade empírica. E a vaidade ou o comodismo dos
investigadores, que não tardam de divulgar com pompa e circunstância
seus achados, por provisórios que deveriam ser, acabam por não lhes
permitir mudar o rumo da interpretação de tais fatos ao longo da
investigação ou instrução criminal. Preferem socar as provas nas
categorias teóricas pré-estabelecidas e escondem eventuais
inconsistências ou disfarçam-nas com puxadinhos doutrinários, como, por
exemplo, o uso distorcido da teoria do domínio do fato de Claus Roxin,
para conceber uma responsabilidade objetiva penal de quem, na posição de
liderança em que se encontrava quando da prática do crime ou dos
crimes, deveria saber da ilicitude e presumivelmente apoiá-la ou, ao
menos, tolerá-la por omissão própria ou imprópria. Claro que um conceito
tão amplo de organização criminosa como o adotado por nossa legislação
permite que nele tudo ou nada caiba, para parafrasear Gilberto Gil em
sua canção “Metáfora”.
Nesse frágil contexto, o uso do instituto da delação
premiada só pode levar a abusos. Se no modelo italiano a premiação da
delação faz todo o sentido como único meio de garantir acesso a
informações que a “omertà” bloqueia com uso de violência e ameaça à vida
e integridade de membros da organização e de seus familiares, no modelo
brasileiro, no qual se conceitua de forma aberta a “organização
criminosa”, ela não favorece virtudes, mas apenas a saída esperta ou
desesperada para quem, implicado, quer se livrar do cárcere ou amenizar a
pena.
O investigado delator não está em situação real de risco
pessoal para ver na colaboração a única forma de sobrevida. A delação
passa a ser apenas um conforto para quem está sob intensa pressão
psicológica. Para obtê-lo, não necessariamente entrega informações
completas, consistentes ou até mesmo verdadeiras. Conta com a
desinformação e preguiça dos investigadores em aprofundar a apuração das
informações. O resultado é esse: promete-se, mas nem sempre se entrega o
prometido e a pessoa delatada não raro é acusada falsa ou
distorcidamente, ao gosto de quem investiga ou instrui, para melhor
adequá-la às categorias teóricas pré-estabelecidas do inquisidor.
É com esse déficit de seriedade que devemos compreender a
delação premiada entre nós. E como seu resultado quase sempre é pífio
com vistas à obtenção de elementos sólidos de convicção, acaba, com a
corriqueira publicidade decretada ou vazada de modo ilegal, por afetar
gravemente a presunção de inocência de cidadãos colhidos por depoimentos
“acoxambrados”. Não é de estranhar que, na operação “lava jato” e
outras do mesmo jaez, Delcídio do Amaral já tenha se dado ao direito de
dizer que costuma lançar muita “bazófia” sobre as condutas dos outros,
desdizendo o que disse em delação ao Ministério Público.
Outro delator anunciou que dera um cheque de R$ 1 milhão de
caixa dois à campanha de Dilma, quando o cheque era destinado a Michel
Temer. Ao constatar o erro, quis retificar a declaração, agora já
assegurando que era doação regular. E fica tudo por isso mesmo, sem
qualquer reação da acusação, que parece se preocupar pouco com a
qualidade das informações obtidas, já que o destino final do processo
parece estar selado com a montagem do modelo teórico inicial sobre os
fatos que calçam a ação penal.
Diante dessa péssima prática, todo cuidado com as delações
de Marcelo Odebrecht é pouco. É fácil, para quem operou uma das maiores
empresas brasileiras de atuação global, implicar meio mundo em suas más
práticas empresariais. Se doações foram feitas a candidatos com seu
devido registro na prestação de contas à Justiça Eleitoral, ainda poderá
dizer, sem demonstração cabal, que a intenção dessas despesas era de
suborno de diretores ou agentes públicos.
Qual será, então, a diferença entre uma doação legal e outra
ilegal, porque fruto de concussão ou corrupção? Será apenas um elemento
subjetivo da intenção de doar, cuja demonstração fica adstrita à
palavra do delator. Este nada tem a perder, pois não haverá quem por
isso irá persegui-lo para ameaçar ou matá-lo ou colocar em risco sua
família, como na prática dos mafiosos.
Fica, portanto, a advertência ao Ministério Público: embora a
obsessão corporativa por reconhecimento público seja muito forte e o
aplauso da mídia deveras tentador para dar prestígio à classe, é bom ter
cuidado na divulgação dessas delações. Mais cedo ou mais tarde, a
verdade poderá vir à tona e o erro judicial é por ora ainda, no nosso
regime constitucional, passível de reparação em prol de quem dele foi
vítima. Quanto à União, faria bem em buscar ação de regresso contra os
que manusearam irresponsavelmente declarações sem consistência para
mostrar serviço. Do contrário, somente nós, os bobões contribuintes,
pagaríamos o pato.
O Brasil com febre está. A febre é sintoma da doença, do
circo judicialiforme, que já destruiu parte da economia nacional e
ajudou a derreter a nossa soberania. Urge combater a doença, remover os
tumores circenses do Judiciário e restituí-lo à sua normalidade
constitucional e legal, sob pena da transformação dos tumores em
metástases.
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